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O clima do Sul de Portugal no século XVIII. Reconstituição a partir de fontes descritivas e instrumentais

Capa
Autor(es):
ALCOFORADO, Maria João; GARCIA, João Carlos; TABORDA, João Paulo
Páginas:
211
Ano Publicação:
2004
ISBN:
972-636-144-3

O clima do Sul de Portugal no século XVIII. Reconstituição a partir de fontes descritivas e instrumentais (PDF formato pdf, 3 814 KB)

Publicação esgotada

Resumo

O CLIMA DO SUL DE PORTUGAL NO SÉCULO XVIII

RECONSTITUIÇÃO A PARTIR DE FONTES DESCRITIVAS E INSTRUMENTAIS

A Climatologia Histórica não é um domínio de estudo com tradição no nosso país. Para além do trabalho de inventariação de observações meteorológicas instrumentais anteriores à fundação do Observatório do Infante D. Luís, realizado por Ferreira nos anos quarenta do século passado, os primeiros estudos surgem apenas na última década do século XX e foram desenvolvidos, quase exclusivamente, no âmbito do projecto europeu ADVICE. Neste contexto, o presente relatório mais não representa do que o resultado de uma sondagem, um esboço de reconstituição dos ritmos térmico e pluviométrico, em Portugal, no século XVIII, não devendo ser encarado senão como um contributo inicial para o conhecimento do clima do Sul de Portugal, num período para o qual não se dispunha, até ao presente, de qualquer informação sistematizada.

Em Portugal continental, as observações meteorológicas instrumentais têm o seu inicio apenas nas últimas décadas do século XVIII. Deste modo, o presente estudo apoia-se, maioritariamente, em fontes documentais descritivas. A pesquisa empreendida veio revelar a extraordinária riqueza em informação meteorológica e climática dispersa nas fontes documentais históricas portuguesas, desde as institucionais, às particulares, bem como na própria imprensa da época, e o seu inegável valor para a reconstituição do clima do passado em Portugal. Raramente se utilizaram notícias que não fossem explícitas quanto ao objecto da investigação, isto é, que não aludissem de forma directa e inequívoca a estados do tempo, a condições da atmosfera e a elementos meteorológicos. A aplicação deste tipo de informação encerra, contudo, alguns problemas, que passam pela subjectividade dos testemunhos, particularmente dos referentes às condições térmicas, pelo carácter esporádico, não sistemático, dos assentamentos e pela diversa resolução temporal das notícias. No sentido de se aferir a qualidade da informação, utilizaram-se vários procedimentos, desde o exame biográfico, no caso dos registos particulares, à diversificação e cruzamento de fontes, passando pela análise semântica dos conteúdos e pela confrontação da informação qualitativa com os registos instrumentais.

De um modo geral, são os excessos climáticos (secas prolongadas, violentos episódios pluviométricos, prolongados períodos de chuva, calores extremos ou inusitadas quedas de neve), que surgem mencionados nos diversos géneros de fontes utilizadas. O maior volume e fiabilidade das notícias relativas a fenómenos hídricos permitiram a sua “semi-quantificação” e transformação em índices mensais, numa escala compreendida entre -1 (mês “seco”) e +1 (mês “chuvoso”) e em que o valor 0 (mês “normal”) foi atribuído sempre que não foi encontrada informação ou as notícias apontavam para condições normais. Dadas as características dos registos, baseados em acontecimentos excepcionais e com impacto sócio-económico, os índices são aqui interpretados como uma medida do comportamento dos fenómenos extremos (chuvas intensas ou prolongadas e secas), mais do que dos valores médios da precipitação.

Ainda que mais escassa, a informação recolhida referente à temperatura permite que se teçam algumas considerações.

As duas primeiras décadas de Setecentos terão sido particularmente frias, quando comparadas com as restantes. Entre 1720 e 1799, não só diminuem as referências a ‘Trio” e a fenómenos associados, como se circunscrevem praticamente ao Inverno e à Primavera.

O estudo de algumas vagas de calor ocorridas na Primavera, particularmente em Março, como, por exemplo, as de 1734 e 1781, parece permitir concluir, aliás em conformidade com o que se passa na actualidade, da sua relação com a fase positiva da NAO. Nessa situação, grande parte da Europa ocidental e central regista anomalias térmicas positivas.

Os exemplos dos invernos de 1708/1709, 1739/1740 e de 1788/1789, mostram, por outro lado, que as crises de frio no continente Europeu e, em particular, no território de Portugal continental, podem estar relacionadas com diferentes padrões, de larga escala, da pressão ao nível do mar. Contudo, essas vagas de frio, durante o século XVIII como na actualidade, aparecem invariavelmente relacionadas com situações de bloqueio da circulação de Oeste e com a advecção de ar frio de Norte, de Nordeste e mesmo de Leste, associadas quer ao desenvolvimento em latitude do anticiclone atlântico (como terá acontecido nos meses de Abril de 1713 e de 1754), quer ao seu posicionamento em latitudes mais setentrionais, nomeadamente sobre as Ilhas Britânicas (como em Março de 1700 e Janeiro de 1740), quer ainda a uma extensão para ocidente do anticiclone continental, por vezes com ligação ao anticiclone atlântico, de que é representativo o mês de Janeiro de 1714.

O índice NAO dos meses para os quais existe informação relativa a vagas de frio em Portugal apresenta, invariavelmente, valores negativos e parece relacionar-se, maioritariamente, com um padrão do campo de pressão ao nível do mar caracterizado pela presença de um centro anticiclónico localizado sensivelmente sobre as Ilhas Brit5nicas, associado a um centro depressionário sobre o Mediterrâneo central. Ilustram esta situação o mês de Março de 1700 (índice NAO=-1.35), Janeiro de 1740 (-3.36), Março de 1754 (-2.00) e Dezembro de 1788 (-3.5). A circulação atmosférica em altitude, nestes meses, ter--se-á, provavelmente, caracterizado pela presença de uma crista anticiclónica sobre a fachada atlântica do continente europeu e por um vale depressionário imediatamente a Leste, com eixo de orientação sensivelmente Sudoeste-Nordeste.

A precipitação, no Sul de Portugal, registou uma forte variabilidade ao longo do século XVIII, parecendo indicar os valores do coeficiente de correlação que a variabilidade da chuva, à escala anual, se relacionou principalmente com a verificada durante o trimestre de Primavera (r=0.91) e, em segundo lugar, com a do Inverno (r=0.81).

Nos primeiros anos do século XVIII, pelas suas características extremas, são de destacar três períodos. O primeiro foi dominado pela ocorrência de chuvas persistentes ao longo de um intervalo de tempo considerável (Inverno de 1706/1707-Verão de 1709, apenas interrompido pela escassez pluviométrica do Verão e do Outono de 1707). Os segundo e terceiro (Inverno de 1711/1712 e o período compreendido entre a Primavera de 1714 e o Outono de 1715) foram marcados por uma situação distinta, ou seja, por um défice hídrico, particularmente prolongado no último caso.

Nos anos trinta, o Sul do país ter-se-á caracterizado por uma forte variabilidade da chuva. A validar também esta conclusão, o conhecimento que se tem da realização de manifestações litúrgicas Pro Pluvia em três anos (1734, 1737 e 1738) e Pro Serenitatem em dois (1732 e 1736), o que faz desta década uma das mais ricas neste género de cerimónias litúrgicas, no Sul de Portugal. Como representativos de uma situação de seca, destacam-se dois períodos: o primeiro, compreendido entre os Invernos de 1733/1734 e 1734/1735 e o segundo com início em Fevereiro de 1737 e prolongando-se até Fevereiro de 1738. Separando aqueles dois, ocorreu um período, entre o Outono de 1735 e a Primavera de 1736, caracterizado por um excesso pluviométrico.

A situação que, no Sul de Portugal, merece um maior destaque nas últimas décadas do século XVIII, período relativamente ao qual se dispõe já de alguns registos instrumentais, nomeadamente para a região de Lisboa, é o ciclo de anos chuvosos, iniciado em 1783 e que se deverá ter prolongado até ao final dos anos oitenta, princípio da década de noventa. Esta flutuação da precipitação no Sul do país, deduzida a partir das observações instrumentais de Lisboa e de Mafra e, também, das noticias recolhidas em fontes documentais descritivas, parece ser correlacionável com os distúrbios climáticos que afectaram algumas regiões da Europa durante a década de oitenta. Outros aspectos que merecem ser referidos são a forte concentração da precipitação, tanto em Lisboa como em Mafra, verificada no mês de Dezembro. Relativamente a Mafra (1783-1787), a análise da direcção do vento permite concluir que, muito embora os ventos dominantes tivessem sido os de N, NE e NW, foram os ventos de SW, S e SE que estiveram relacionados com cerca de dois terços da precipitação registada em Mafra durante aqueles anos. São também aqueles rumos, particularmente os de SE e S, que estiveram associados às precipitações mais intensas.

Como tem sido demonstrado por vários autores, a Oscilação do Atlântico Norte é, no presente como no passado, um factor determinante para o regime da precipitação invernal na Península Ibérica. No sentido de se avaliar a relação existente, no Sul de Portugal, durante o século XVIII, entre a precipitação e o índice NAO foram efectuadas várias regressões simples. Os valores de r mais elevados foram, invariavelmente, obtidos para a Primavera (Março-Maio). Atendendo a que, tanto o volume como a qualidade da informação em que se suporta o presente estudo não apresentam características homogéneas ao longo do século XVIII, realizaram-se também regressões para diversos períodos. Tentou-se, deste modo, verificar quando terá sido mais forte a relação entre o índice NAO e a precipitação no Sul do país. Os melhores resultados foram alcançados para o conjunto de anos formado pelos períodos 1728-1764 e 1779-1799. Trata-se, se não se considerarem os primeiros quinze anos do século, dos intervalos para os quais se dispõe de um maior volume de notícias e, simultaneamente, de informação mais fiável, o que poderá explicar os valores de r mais elevados, inclusive no Inverno.

Para finalizar, importa salientar, de novo, que o estudo aqui apresentado não possibilita senão uma visão descontínua da variabilidade climática, particularmente da precipitação, no Sul de Portugal, durante o século XVIII. No sentido de se ampliar e aprofundar o conhecimento do clima de Portugal no passado, é de extremo interesse dar continuidade à pesquisa e inventariação das fontes documentais históricas, estendendo a prospecção a bibliotecas e arquivos de outros pontos do país, bem como prosseguir o seu estudo e análise sistemáticos, que deverão ser empreendidos à luz de uma estratégia concertada e de uma perspectiva interdisciplinar.

Informação actualizada em 07/04/2022